Artigo de opinião da Enfermeira Maria Augusta de Sousa publicado dia 7 de Junho no Jornal Público, Link
"O SNS não tem um estatuto jurídico próprio que lhe permita não estar sujeito à permanente oscilação dos ciclos políticos.
Se, por um lado, assistimos a um grande unanimismo
sobre a importância do Serviço Nacional de Saúde, por outro são preocupantes os
diversos diagnósticos de doença do sistema de saúde. Que doenças são
identificadas e quais as propostas de cura?
1.
O quadro legislativo e o garrote que impõe ao SNS
A
Lei de Bases da Saúde de 1990 introduziu uma alteração profunda colocando
expressamente o sector privado em concorrência com o sector público quando na
sua origem em 79 se colocava o sector privado e social em complementaridade
onde o SNS não tivesse capacidade de resposta.
Nos
quase 30 anos de vigência da lei, as políticas neoliberais conduziram a que o
sector privado tenha hoje uma implementação em grandes unidades hospitalares à
custa do definhamento dos serviços públicos, seja pelo subfinanciamento, seja
pela captura de profissionais altamente qualificados sem os custos que lhe
estão associados e à custa dos subsistemas de saúde, nomeadamente a ADSE.
O
SNS não tem um estatuto jurídico próprio que lhe permita não estar sujeito à
permanente oscilação dos ciclos políticos, o que conduz à descontinuidade de
orientações e políticas que deveriam estar plasmadas na Lei de Bases da Saúde
mas que da atual se encontra ausente.
3.
O subfinanciamento crónico do SNS
Não
pode ser uma fatalidade, mas para tal são necessárias opções políticas que
invertam a atual situação e que para além de ser necessário travar a diminuição
do financiamento pelo OE, que atingiu cerca de um milhão de euros por ano entre
2010 e 2015 com o PSD e CDS a irem além da troika, esta situação provoca
estrangulamentos nos recursos disponíveis – humanos e tecnológicos – cujas
consequências para além do dia a dia nas respostas necessárias aos cidadãos,
nos custos que estes e suas famílias suportam, e levam consigo reflexos que não
são de imediato mas de médio e longo prazo na saúde global da população.
Não
existe uma planificação que permita identificar de forma objetiva as carências
existentes a nível de pessoal e de tecnologias (equipamentos de vária ordem,
muitos já obsoletos) que evite desperdícios e redundâncias, sendo muitas vezes
decidido de acordo com os “lobbys” corporativos económicos e profissionais
criando distorções na distribuição e na acessibilidade aos cuidados. Um efetivo
observatório de saúde, seja a nível regional, seja a nível nacional, onde a
Saúde Pública assume particular relevância está hoje praticamente desmantelado
e de eficácia reduzida.
Tudo
tem de passar pelas finanças mesmo quando se trata de cumprir os contratos
celebrados por cada instituição com o Ministério da Saúde e das Finanças, o que
promove uma cultura organizacional que impede, através da autonomia da sua
gestão, a sua responsabilização no cumprimento dos compromissos e na agilidade
das respostas necessárias.
A
introdução de vínculos laborais diferentes, a estagnação na valorização do
trabalho de todos os trabalhadores da saúde, a permanente desorganização dos
horários de trabalho por carências efetivas são demonstrativas de ausência de
uma politica de reconhecimento que o pilar essencial do SNS são os seus
profissionais. Que estão exaustos, cansados e que se o privado lhe oferece
melhores condições abandona o público, deixando este mais pobre e com menor
capacidade de resposta.
Para
além de serem sempre limitados e as necessidades ilimitadas, existe uma efetiva
distorção na sua distribuição em função das necessidades identificadas. Os
cuidados de proximidade, nomeadamente os CSP, CCI e os cuidados domiciliários,
apesar de alguns avanços, é onde as lacunas de respostas mais se evidenciam,
transportando para as urgências hospitalares as respostas com o consequente
aumento de despesas e transtornos para os cidadãos.
8.
As áreas de promoção e prevenção, incluindo a Saúde Mental, são os parentes
pobres no SNS
Quando
olhamos a distribuição do volume de financiamento do SNS e verificamos que
apenas 0,3% são para cuidados domiciliários e 1,1% para cuidados preventivos,
facilmente compreendemos como estas áreas têm pouca possibilidade de
desenvolvimento das respostas adequadas que possam inverter a tendência
“hospitalocêntrica” de um sistema cujo diagnóstico já está feito há muitos,
muitos anos...
À
situação anterior junta-se a questão da intercomunicabilidade e integração da
prestação de cuidados. A organização por silos onde cada um pensa e gere de
acordo com o seu umbigo cria entropias, despesismo e ausência de circuitos de
facilitação para quem necessita de cuidados de saúde, ao invés de os circuitos
estarem ao serviço das necessidades dos cidadãos.
10.
As culturas profissionais determinam o funcionamento das organizações
A
situação anterior não é alheia a culturas profissionais que procuram perpetuar
a situação, havendo uma dominância da organização dos cuidados em função da
organização médica desperdiçando competências de outros profissionais para
respostas que deveriam, se centradas nos cidadãos, serem da responsabilidade de
equipas multiprofissionais onde o profissional mais apto a dar resposta deve
ser quem assume a intervenção, onde as repostas não têm todas de passar pela
aprovação do médico mas por uma efetiva avaliação de resultados pelo que a
equipa oferece para a melhoria da saúde dos cidadãos a que têm a
responsabilidade de responder.
Em conclusão e o que fazer
1.
Sobre o SNS, a sua defesa é a defesa da nossa saúde
Os
serviços públicos são o garante do acesso de todos independentemente das
condições económicas, religiosas, étnicas (universalidade) e a todos os
cuidados de que necessitem na doença e/ou que integram a promoção, a prevenção,
a reabilitação e a paliação.
2.
O sector privado pode existir em complementaridade onde o SNS não tem resposta
adequada
O
sector privado não pode continuar a ser o que absorve parte do financiamento
dos dinheiros públicos para a saúde, garantindo os seus lucros, definhando o
sector público pela captação de recursos humanos altamente qualificados.
Não
podemos permitir continuar a navegar à vista e conduzir politicas que não
sirvam a melhoria da saúde global dos cidadãos.
4.
Investir e reconhecer o valor económico da saúde
É
um imperativo e passa por investimentos tecnológicos urgentes e pelo efetivo
reconhecimento dos profissionais com maior número, melhores salários e estes
mais equitativos.
5.
Um SNS que não seja formado por silos
Hoje
há tecnologia de informação que permite repensar a organização dos cuidados que
se oferecem. O caminho é que cada cidadão, de acordo com as suas necessidades,
possa ter a resposta adequada e em tempo útil e não percorrer caminhos
tortuosos no acesso aos mesmos.
6.
Um SNS descentralizado e participado a todos os níveis
É
necessário alterar a lógica da “financiarização” e da centralização por
controlo de gastos, que só aumenta a despesa de curto e médio prazo. Por isso,
a autonomia e consequente responsabilização da gestão deve ser garantida com a
participação dos profissionais mas sobretudo com a participação dos cidadãos
aos vários níveis de gestão do SNS.
7.
Inversão na redistribuição dos recursos que contribua para diminuir as
desigualdades
Criar
as condições necessárias para um real investimento na promoção da saúde e
prevenção da doença potenciando a utilização dos recursos comunitários
existentes pela coordenação efetiva dos meios para as respostas às necessidades
identificadas e minimizar as desigualdades existentes.
8.
Culturas profissionais promotoras de respostas integradas
Os
profissionais de saúde têm hoje formação e competências que não podem ser
menosprezadas sem aliviar as suas responsabilidades nas escolhas do que é
melhor para as respostas às necessidades dos cidadãos, capacitando-os e
garantindo as respostas adequadas.
9.
Capacitação dos cidadãos e participação efetiva
A
participação efetiva dos cidadãos, sem a qual as mudanças serão seguramente
mais difíceis e mais pobres. Mas a participação efetiva exige capacitação e
dinâmicas organizacionais distintas das que conhecemos até hoje.
Tomemos medidas antes que
seja tarde."
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