a razão desta escrita foi isto …alterei apra o que escrevi acima
notícia sobre a decisão do Bastonário da Ordem dos Médicos, Dr Miguel Guimarães, de abandonar o Conselho Nacional de Saúde, justificada pela não substituição do seu Presidente, Doutor Jorge Simões ao qual é atribuido afirmações que se reportam a Setembro último sobre a possibilidade de enfermeiros realizarem actos próprios dos médicos.
Vejamos:
Quando alguém se pensa possuidor de um território e se sente ameaçado mesmo que seja
apenas por percepção monta as barreiras que entende necessárias para o defender. Na saúde, assumem os territórios das profissões, a sua ocupação e a sua interdependência uma inevitável tensão que só a procura das soluções mais adequadas para as respostas às necessidades dos cidadãos em cuidados de saúde pode esbater.
Pensar saúde é pensar mais do que tratar e curar doenças. Pensar saúde é pensar mais que
números e atos isolados. Pensar saúde é mais do que pensar despesas e receitas. Pensar saúde
é mais do que pensar cada profissão por si.
Pensar saúde é pensar e agir de acordo com as necessidades dos cidadãos procurando o
necessário equílibrio entre as necessidades sentidas/ as necessidades identificadas e as
respostas ajustadas que o conhecimento científico suporta e que se podem disponibilizar.
Pois bem, é neste “poder disponibilizar” que, apesar da interferência das políticas gestionárias
implementadas e dos recursos financeiros existentes que as suportam, se cruzam os territórios de intervenção das profissões de saúde na organização dos cuidados que podem ser disponibilizados.
Sendo a questão transversal a todas as profissãos de saúde determe-ei no que a médicos e enfermeiros diz respeito.
Ora se analisarmos um pouco, e com serenidade, facilmente compreenderemos que os
territórios de intervenção dos vários profissionais não podem ser transferidos entre eles. Ou
seja:
- o médico aplica o seu saber suportado na evolução da medicina, procurando sempre as
melhores soluções para a pessoa quando portadora de uma doença que passam pelo tratamento e a cura ou/e sempre que possível que a mesma seja evitada. Por isso, quando estamos doentes todos
confiamos que o médico nos trate com todos os meios que possam conduzir à cura ou à
minimização dos efeitos da doença quando ela não tem cura, mas também promovendo as
intervenções dirigidas à pessoa, família ou comunidade que possam evitar a doença evitável.
- o enfermeiro aplica o seu saber suportado na evolução da enfermagem, procurando sempre
promover as melhores condições para a que a pessoa portadora de doença maximize todas as
suas potencialidades para poder melhor reagir à sua situação e/ou aplicando todos os
instrumentos disponíveis que possam minimizar os deficites daí decorrentes e também
promovendo as intervenções dirigidas à pessoa, família ou comunidade que possam evitar a
doença evitável.
Assim, é neste quadro de referência e na relação com todas as outras profissões que
médicos e enfermeiros actuam em complementaridade e têm a responsabilidade de garantir
aos cidadãos as respostas mais eficazes às suas necessidades em saúde.
É isto que deve ser discutido e aprofundado e aí ser encontrada a forma e legitimação do que
cada um pode e deve fazer em função dos seus saberes próprios, da partilha das soluções
possíveis e do reconhecimento mútuo das competências de cada um. Ao desenvolvê-las em conjunto acresce valor no processo de cuidados e elimina barreiras que são desperdício de recursos.
Na distribuição de médicos e enfermeiros, Portugal tem um padrão que que se afasta da média europeia e que dificulta objectivamente a alteração do paradigma da saúde condicionado pela lógica da doença.
Entre os 28 países da EU o nº de médicos por 1000 habitantes era de 4,4 correspondendo ao 3º lugar, sendo a média europeia de 3,5 (13º lugar). O inverso se verifica com os enfermeiros com 6,1 enfermeiros por 1000 habitantes, ocupando o 20º lugar e sendo a média europeia 8,4 (11º lugar), estes dados significam que Portugal tem uma proporção de enfermeiros/médicos de 1,4 quando a média da EU é de 2,4.
Ora se pensarmos que a evolução positiva da esperança de vida transporta consigo
necessidades de cuidados de saúde de proximidade, de apoio e manutenção das capacidades
para se atingir o máximo de autonomia, percebemos que o suporte ao auto-cuidado assume e deverá assumir um peso muito mais relevante do que hoje se verifica, e que para tal, são necessários mais enfermeiros do que aqueles que hoje são contratados no quadro dos serviços de saúde.
O aumento da esperança de vida em Portugal acompanhou os avanços dos restantes países da
EU e num tempo mais rápido. Este facto não é alheio à melhoria das respostas em saúde e das
condições de vida em geral que o pós 25 de Abril permitiu. Mas estamos ainda longe de que o
ganho em anos de vida seja acompanhado de anos de vida saudável. Se compararmos, por
exemplo, uma mulher após os 65 anos na Suécia tem 3 vezes mais anos de vida saudáveis do que uma mulher portuguesa.
As pessoas portadoras de várias doenças crónicas são as que em regra recorrem mais às
urgências hospitalares ficando aí, por vezes, em condições que nem sempre ajudam a resolver o
problema, pela superlotação que aí se encontra. Ora se a estas pessoas forem disponibilizados
cuidados, permanentes e atempados, que permitam diminuir situações de agudização que evitem o recurso à urgência e ao internamento hospitalar, estaremos a humanizar os cuidados e simultaneamente a utilizar melhor os recursos disponíveis. Para tal é necessário um profissional que seja o gestor com a disponibilidade necessária para o suporte ao processo e encaminhamento se necessário. Não pode o enfermeiro ser quem assegura esta gestão? Nada o impede senão uma visão retrógrada e burocrática que impede agilizar processos e referenciações de acordo com as necessidades em cuidados.
É esta visão burocrática que nada tem a ver com substituição de tarefas que impede por exemplo que o enfermeiro, que acompanha um doente com colostomia, no domicilio ou na consulta de enfermagem do Centro de Saúde, que ao avliar o estado da pele e do estoma decide ser necessário alterar o tipo de saco que melhor se adapta, decide e indica qual deve ser adquirido, ou seja prescreve. Mas para que a sua compra seja comprticipada é obrigatório apresentar uma receita médica…
Estas práticas não fazem sentido nem sob o ponto de vista técnico – porque desresponsabiliza
quem toma a decisão - nem sob o ponto de vista económico pelo tempo desperdiçado tanto
pelos utentes como pelos profissionais.
Nestes exemplos e em muitas das situações do quotidiano vividas por médicos, enfermeiros e
outros profissionais, é difícil aceitar que, apesar de ser reconhecido que o enfermeiro avalia a situação e decide a intervenção necessária, incluindo nela os procedimentos técnicos baseados na melhor prática, que ainda garante a continuidade de cuidados e identifica eventuais alterações, seja exigida ainda uma opinião/intervenção de outro profissional, nomeadamente do médico.
Sendo esta a realidade, porque continua a ser díficil conceber novos modelos de organização e prestação de cuidados que incorporem uma lógica de responsabilização pela complementaridade e não pela subordinação?
Se com realismo e frontalidade olharmos esta realidade, percebemos que (i) a evolução
tecnica e científica das várias profissões (ii) as respostas às necessidades em cuidados que os
cidadãos têm direito a usufruir (iii) a evidência de que o modelo biomédico tradicional não
responde às exigências de mais e melhor saúde, obriga a que se alicerce de uma nova filosofia
que suporte uma nova organização do processo de cuidados. Não o fazer é desperdiçar
recursos e alimentar lógicas de poderes instituídos que, centrados em si próprios, conduzem à
negação da natureza das profissões de saúde, e em consequência, à efectiva melhoria das
organizações de saúde onde os cidadãos esperam ter ao seu dispor os profissionais que
melhor possam responder às suas necessidades percecionadas.
Por isso afirmamos as profissões de saúde existem porque as pessoas têm direito a usufruir
dos cuidados a que o estado da arte obriga cada profissional a disponibilizar na resposta às
efetivas necessidades percecionadas e identificadas. Cada profissional tem a obrigação
de reconhecer os limites da sua intervenção sabendo e atuando de acordo com as suas
competências, mas sempre num quadro de complementariedade interprofissional e
interdisciplinar.
Nenhuma profissão será diminuída. Pelo contrário só num modelo de corresponsabilização e
não de subordinação se dispensarão o conjunto dos cuidados de saúde que contribuam para
mais saúde e bem-estar dos cidadãos. Reconhecer isto é um imperativo ético e deontológico a
que as profissões de saúde estão obrigadas.
Por tudo isto não é compreensível o abandono do Conselho Nacional de Saúde por quem tem o dever de participar em tudo o que à saude diz respeito.
Maria Augusta Sousa